Quinta, dia 25, eu indo para casa vindo da escola, quando vi pela primeira vez a filmagem da fuga desabalada de "fora da leis", que corriam por uma estradinha de terra batida entre duas favelas aqui do Rio. Tentavam escapar da favela Vila Cruzeiro, que estava sendo invadida pelas forças do estado. Durante a correria, era possível ver vários deles sendo alvejados por policiais de tocaia na mata (ou em helicópteros). Parecia tanto um filme que demorei a acreditar na cena, mas as pessoas num bar exultavam: “bandido tem mais é que morrer”, “BOPE neles!”, “tem que botar o exército pra acabar com esses vagabundos”. Os espectadores chegavam a salivar revirando os olhinhos.
Natural que situações assim provoquem um clima de euforia pela cidade. Admito que parte de mim também se empolgou com a atuação da polícia. Afinal, o estado parece estar caminhando para uma presença maior na comunidade em questão. Porém, não dá pra engolir a execução sumária televisionada ao vivo e em cores e aplaudida como se fosse uma cena do Tropa de Elite. Eu sei que pedir um olhar crítico da televisão brasileira seria sonhar alto demais. Mas me irritam os programas que sequer informam sobre o que está acontecendo. Tipo, pelo menos descrever uma razão para os fatos. Limitam-se a exibir as cenas sob manchetes inflamadas, com direito a declarações consternadas de âncoras e repórteres. A situação fica posta nos termos mais ignorantes, como se fosse uma guerra do bem contra o mal, do governador herói versus os bandidos malvados.
O problema é resultado de anos de pseudoconsciência eleitoral que gerou uma má gestão, ou melhor, uma péssima gestão que por sua vez causou a ausência do estado em muitos lugares durante muito tempo o que originou uma exclusão social drástica e que, pelo visto, levará muito tempo para se resolver. Mas preferimos nos ater ao que está em nossos olhos numa visão superficial e não como um todo. O jornalismo brasileiro parece priorizar a exaltação à violência e a barbárie. Repete-se o discurso do medo e da guerra, o fundamento de toda a tirania. Moraliza-se como questão de segurança um debate que é político. Ora, a violência urbana não é causada pela maldade na cabeça de algumas pessoas, como muitos pensam, mas por fatores sociais, econômicos, históricos, que condicionaram as relações de poder e produzem a violência na metrópole.
Esse discurso rasteiro, reproduzido fervorosamente por tantos em suas micromídias (rodinhas, twíter, etc), pretende unificar a sociedade numa cruzada do bem contra o inimigo. Porém não acerta gigantes imaginários porque não existe nenhuma relação de causa e conseqüência entre:
A) invadir uma favela e “passar o rodo nos soldados do tráfico” e
2) assegurar a segurança aos cidadãos do asfalto.
Não sem antes acabar com os motivos para se existir o tráfico ou os que propicionam a sua existência. Eu sei que parece que eu estou disposto à discordar do que todos já tinham se posto em acordo, como disse a Michele, mas se não for pra isso, então me recuso a falar, porque, que graça tem meter o malho no que já está cansado de ser malhado? Mas vamos lá.
Como assim, não aplaudir a tocaia?
Isso não é pra aplaudir, mas pra vaiar. Uma coisa é responder fogo com fogo, reagir num tiroteio pra se salvar. Outra é tocaiar um grupo se retirando do campo de batalha. Reparem que os atingidos nem carregavam fuzis.
Ora, mas eram todos bandidos, não eram?
Em tese, eram. Mas existe bandido e bandido. Tem o chefão mandante de 50 homicídios e tem o aviãozinho de 14 anos que entrega a trouxinha.
E se, hipoteticamente, sejam todos eles, sem exceção, assassinos sanguinários?
Que eu saiba, não há pena de morte no Brasil. E, mesmo que houvesse, não seria permitida a execução sumária (sem acusação, defesa, julgamento e apelação).
Pelo visto você gosta de defender bandidos.
(Pois é, essa é a área mais lucrativa do Direito) Brincadeiras à parte, não é questão de defender um lado ou o outro mas de ser contra a morte. A Justiça brasileira tem lá seus meios de punição adequada (risadas), pelo menos ao mais desfavorecido e acredite não é matando. Fora isso a morte é inevitável num confronto direto, isso não posso negar, se for um confronto direto.
Mas nossa legislação é muito fraca para com os criminosos.
Concordo, mas, você concorda que ela não vai mudar por conta própria enquanto curtimos um crime compensando o outro.
Discurso humanista chato mas contra o crime organizado não pode ter moleza, aquela galera ali é parte desse jogo.

Pronto, a essa altura, os leitores me consideram um sem-noção irremediável. E talvez você analise: veja bem, era guerra, a bandidagem começou, pediu e recebeu, está queimando carros, metralhando postos de polícia, com tudo isso é natural que a sociedade queira uma resposta imediata e os próprios moradores das favelas apóiem as operações.
Primeiro, é tremenda ilusão acreditar em “respostas imediatas” para problemas complexos e profundos. Desconheço questão mais complicada do que a segurança pública no Rio de Janeiro. No fundo, essas “respostas imediatas” camuflam outra coisa, bem mais preocupante: estado de exceção. Isto significa: a desativação de garantias e direitos, a tolerância de excessos e abusos, de maneira que os atos ilegais do estado não sejam considerados delituosos, que cada agente se veja forçado à aplicar todos os meios disponíveis. É um cheque em branco para fazer o que for preciso pra restabelecer a "ordem".
Segundo, não tem guerra coisa alguma. O que se tem hoje no Rio não é sequer “guerra civil”. A menos que se aceitem vagas classificações: “guerra contra o tráfico”, “guerra contra as drogas”, “guerra contra o crime” etc. Porém, tudo isso não é propriamente guerra; aliás, é rotina…
Terceiro, não faço apologia aos grupos de varejo de drogas, e muito menos coloco as minhas fichas nos traficantes, como se fossem uma forma de resistência, uma forma democrática ou progressista. Não e não. As facções ocupam territórios como se fossem feudos, subjugam os moradores, impõem a lei do medo, não vão além de um governo despótico bastante precário e descontrolado.
Na minha opinião estão fazendo as perguntas errradas. Toda a questão está mal-colocada por causa do imediatismo e da pulsão da morte que a grande imprensa promove, a televisão em especial. Essa percepção é uma das principais causas do estado das coisas.
Então, o que fazer?
Primeiro, achar uma pergunta melhor. Pode não haver o xis da questão, a resposta definitiva, mas alguns fatores merecem atenção, como a Educação e Cultura.
Segundo, é preciso analisar a economia por trás das ilegalidades. Como o dinheiro e o poder circulam ao redor do comércio de drogas ilícitas. Quem ganha por permitir? Quem é beneficiado politicamente? Quem trafica influência? Quem define o que é tolerado e o que não é? E o mais importante, quem sustenta? Não ache que moradores de comunidades carentes pagam sozinhos as contas do tráfico.
Seguindo assim você verá que a guerra contra o tráfico é um efeito colateral do que envolve até a saúde pública. (Isso eu explico depois)
Mas, o que é o tal sistema, cara-pálida?
Nesta questão particular:
1) a base histórica de desigualdade e racismo que atravessa a sociedade toda,
Em resumo: o problema é falta de democracia. Daí a solução passar, necessariamente, por mais democracia. E isso se realiza com políticas concretas, a incidir sobre causas materiais, com dignóstico da situação real, evitando cair nos vários problemas citados no texto: o espetáculo da mídia, a análise imediata, o discurso do medo e da exceção, a farsa do poder constituído. Isso só será realmente resolvido com o amadurecimento do eleitor brasileiro, mas, até lá...